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UM SORRISO JÁ ME PAGA

Não sei, talvez você nem se lembre de mim, mas nós nos cruzamos nos corredores, elevadores e entres-salas do mesmo prédio, quase todos os dias. Algumas vezes, no mesmo restaurante, aquele entre o Santander e a lojinha de aromas, onde só servem comida funcional, e eu bebo água com baixo teor de sódio e você suco de frutas vermelhas ou amarelas. Às vezes, no ônibus de volta, outras no metrô de ida. Raramente, mas acontece, na faculdade onde talvez você também faça Letras.
Eu não sei o seu nome e nem preciso. Eu não estou interessado em você; não que você não seja atraente, é só que estou a fim de uma outra aí. Não tenho qualquer intenção de tirar suas calças, a não ser que você queria muito, é claro, aí posso fazer algum esforço nesse sentido. Também não quero ser seu amigo, porque quando sou amigo sou radical, sou pra valer, para o que der e vier, tudo ou nada e tudo isso. Não que você não seja amigável, apenas não preciso de mais amigos, pois amigos dão trabalho, você tem de ligar em seus aniversários, aturar suas mentiras, rir de suas piadas nefastas e emprestar seu sofá quando são chutados por suas namoradas.
Mas daquela vez que eu dei o meu lugar no trem e você se espalhou toda cansada, poxa, não pegou bem fingir que a gente sequer se conhecia de algum lugar. Certo, admito que na grande parte das vezes nós, garotos, queremos algo impudico em troca de pequenos gestos bacanas, mas também não é assim. Eu sei que você tem potencial para segurar uma porta de vidro maciço sozinha, e que não precisa tirar da sua beleza vantagem para sair e entrar nos lugares. Mas leve em consideração todo investimento que minha mãe fez na minha educação, os puxões de orelha que tomei por ser grosso com minha irmã mais velha, o tempo que perdi lendo revistas Capricho quando eu podia, sei lá, um monte de coisas, tipo estar driblando latas de lixo ou vencendo chefões do Double Dragon.
Quando fiquei uns três segundos segurando a porta pra você passar, eu só estava sendo legal e mais nada, não precisava mostrar aquela feição severa de não-preciso-de-homem-me-fazendo-favores. Certo, você venceu, se estou reclamando é porque criei alguma expectativa por uma reação pós-gentileza, porque nós somos todos iguais e toda essa lenga-lenga de sabedoria pop a respeito dos homens.
Eu queria alguma coisa, é claro, mesmo sem muita certeza do quê. Um aplauso, delivery de sopa quando eu estiver gripado, ou mesmo em dinheiro, pode ser. Ou nem tudo isso. Um simples sorriso de reconhecimento pagava e pegaria bem, então o meu cavalheirismo múmia já teria valido a pena.

(Gabito Nunes)

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